19 julho, 2005

A Festa

Foi com muito gosto que aceitei o convite do Ruca e do Ricardo. E abraçando o desafio, deixo aqui um conto da minha autoria, intitulado "A Festa":

Encontrava-me num belo e verde prado, recheado de tulipas e malmequeres. No céu brilhava um radioso sol de estio, pleno de vida e calor. Caminhava sozinho no prado, envergando um fato escuro com gravata azul clara, e ainda com uma mala negra na mão. Não se via vivalma por perto, até que, ao chegar ao topo de um outeiro encimado por uma solitária azinheira, avistei uma pequena cabana junto de um rio cujas águas corriam devagar e preguiçosamente. Quase tão lesto de pés como de raciocínio, rapidamente cheguei junto daquela pequena cabana de madeira escura, coberta por telha vermelha e abraçada por uma enorme hera verde que se estendia por todo o seu perímetro. A porta era pequena e arredondada, dando a indicar que o proprietário da casa era de reduzida estatura. Nela bati e, sem prestar atenção às regras da boa educação e cortesia, entrei sem esperar que ma abrissem.

A casa era escura. Procurei um interruptor, mas em vão. Até que, subitamente e sem que me tenha apercebido como, num canto da casa se acendeu uma lamparina a petróleo. A sua luz ténue e avermelhada conferia um ar sinistro ao interior da cabana. E foi então que, vindo não sei de onde, escutei um som estranho. Primeiro pensei que se tratasse do ruído produzido pelo chocalhar de pequenos metais; depois, porém, à medida que o som se tornava cada vez mais forte e próximo de mim, apercebi-me de que se tratava do estrépito provocado pelos cascos de um cavalo. Com efeito, alguns segundos depois, um enorme cavalo branco avançou na minha direcção. Assustei-me imenso quando vi a sua medonha carantonha surgir de entre a penumbra, com o longo focinho esticado e os enormes e brancos dentes arreganhados.

O cavalo era de uma alvura impressionante, mesmo que visto à luz daquela ténue lamparina. Trotou suavemente na minha direcção; sentia-lhe já as pesadas passadas e a roufenha respiração quando me dei conta de que ele não estava a olhar para mim. Ele não vinha na minha direcção, como até aí julgara; simplesmente, eu encontrava-me no seu caminho. O cavalo branco ignorou-me principescamente, evitando chocar contra mim e torneando-me. Mas quando passava pelo meu lado esquerdo, e sem que eu ousasse dizer ou fazer algo – tal era o insólito da situação -, o cavalo interrompeu o seu trote, virou a sua grande cabeça na minha direcção e, com uma voz “professoral” e estranha como nunca antes ouvira, sussurrou calmamente “Ora muito boa noute”. Espantadíssimo, quer com o facto de ouvir um animal falar, quer por ele utilizar arcaísmos, respondi-lhe com um tímido “boa noite”, ao que o bicho abanou a cabeça de cima a baixo, relinchando e parecendo sorrir, continuando depois o seu caminho com o ar mais natural do mundo. O animal desapareceu nas sombras, tão misteriosamente como surgira, pelo que depressa me achei novamente sozinho.

Entretanto, muito calmamente se extinguiu a chama da lamparina de petróleo. Encontrava-me outra vez nas trevas, num silêncio assustador. Envolto na mais quieta penumbra, quase podia ouvir o bater do meu coração. Nesse momento, uma porta se abriu à minha direita, deixando escapar uma forte luz branca. Ávido por alguma claridade, caminhei na sua direcção, entrando num comprido corredor do fundo do qual vinha a luz. À medida que caminhava, a luz parecia ir ficando cada vez mais fraca, ou tal seria apenas impressão minha, uma vez que os meus olhos se estavam a habituar novamente à claridade. E, também à medida que avançava pelo corredor, fui escutando o som de uma festa, com muita gente a falar, a rir e a divertir-se, acompanhado dos acordes de uma música que jamais ouvira, produzida por um qualquer instrumento que nunca antes vira.

No fim do extenso corredor, dois guardas armados de lanças obstruíam-me a entrada. Eram altos e fortes, usando couraça e elmo recheado de penas vermelhas. Pareciam saídos de um velho filme de Cecil B. De Mille, pensei eu. Quando me cheguei junto deles, retiraram da frente do meu caminho as duas lanças que até se encontravam cruzadas de maneira a impedir a entrada. Um deles, de bigode comprido e retorcido, disse-me com uma grossa voz gutural: “estávamos à sua espera”.

Fiz sinal com a cabeça ao guarda – como se também eu fosse uma personagem daquele “filme” e entendesse que diabo se estava a passar! -, e entrei num grande salão onde decorria a festa.

A sala era espaçosa e bem construída, sendo o abobadado tecto decorado com um fresco muito semelhante aos que Miguel Ângelo pintou na Capela Sistina. Até pensei para comigo que certamente alguém tinha roubado o tecto daquela capela vaticana!

O salão encontrava-se repleto de convivas, ao que parecia muito divertidos e vestidos com trajes estranhos. Uma mulher de meia idade, pálida e aloirada, vestida como uma cortesã da época de Luís XV, aproximou-se de mim e, com sotaque alemão, cumprimentou-me e tratou-me pelo nome. Com um aceno de cabeça, ao mesmo tempo que escondia o bonito sorriso atrás de um colorido leque, a dama chamou um lacaio de libré, o qual me pegou na pasta negra que levava na mão. Protestei, dizendo que tal não era necessário; o criado, porém, insistiu e levou a dele avante, pegando na mala e guardando-a no bengaleiro.

Procurei a minha anfitriã, tentando saber quem era e como me conhecia, mas ela havia desaparecido. Contemplei novamente o belíssimo tecto, onde vi uma mão enorme – vinda não se sabe de onde -, escrever com o indicador esticado, em cor de sangue, as palavras “Mené, Teqel, Farsin”. Interroguei-me sobre o que é que aquilo quereria dizer, ao que uma voz feminina se fez ouvir por trás de mim e comentou: “Medido, pesado e dividido”. E acrescentou, sussurrando em voz sibilina: “Tem cuidado, pois o mesmo foi dito a Baltasar”. Voltei-me rapidamente, mas não vi ninguém atrás de mim.

Entretanto, a festa prosseguia com todo o seu esplendor e animação. Dois anões corriam entre os convivas, pregando partidas um ao outro e aos incautos que com eles se cruzavam. Um deles, o mais gordinho, deu um pontapé no rabo de um homem vestido com traje de almirante oitocentista, o qual tombou fragorosamente entre duas damas que animadamente discorriam sobre vestidos e penteados. “Mesmo neste mundo estranho, mulheres serão sempre mulheres”, pensei eu. Envergando as coloridas vestes de um xamã, um índio dançava freneticamente entre os restantes convivas, repetindo uma qualquer lengalenga cujo sentido ou significado não consegui apurar. Dois homens, ambos com longas barbas brancas e usando velhas e compridas túnicas amarelecidas pelo tempo, jogavam uma aparentemente infindável partida de xadrez. “Cada jogada demora anos”, comentavam algumas pessoas em meu redor, com o nítido e característico entusiasmo dos adeptos desportivos. Um piloto de “Fórmula 1” andava aos circulos pelo salão, ao votante de uma pequena bicicleta com duas rodinhas dos lados, não fosse perder o equilíbrio. O homem parecia muito orgulhoso de si, por ser capaz de conduzir aquele veículo.

Escutei o pregão de um ardina, o qual circulava entre os convivas transportando um grande saco cheio de jornais. Era um homem anafado, moreno, com barba por fazer e boina basca na cabeça. Aproximei-me dele e pedi-lhe um jornal, ao que ele me deu a escolher entre quatro periódicos. Os três primeiros eram antigos, já com o ar gasto e amarelecido dos jornais velhos. Não tinham fotografias e utilizavam a grafia antiga, com “Ph” no lugar dos “F”.

Por seu turno, o grafismo do quarto jornal era claramente actual. As páginas eram a cores e em todas elas abundavam as fotografias. A notícia de primeira página era relacionada com o défice das contas públicas e o baixo crescimento económico. Curioso, atentei na data; foi então que constatei que se tratava do jornal daquele mesmo dia. Folheei avidamente as suas páginas, até que algo me prendeu a atenção. Era uma pequena notícia da secção “Local”, encimada por uma colorida fotografia da minha pessoa, e que rezava o seguinte: “Faleceu ontem, aos 44 anos de idade, o conhecido empresário fulano de tal, vítima de um trágico acidente de viação. O veículo do empresário despistou-se por volta da meia noite de ontem, quando seguia na autoestrada em direcção à capital. As autoridades estão a investigar as razões do sinistro, mas tudo aponta para uma fatal conjugação entre o excesso de velocidade e as más condições climatéricas. Não se verificaram mais feridos ou vítimas mortais.”

Compreendi então o que passava. O jogo terminara para mim. Alguém disse em tempos que quando a morte nos sorri, tudo o que podemos fazer é sorrir-lhe de volta. Tal como aquela dama setecentista que me recebeu na festa, estou doravante condenado ao esquecimento; ora se Némesis me abraça, também eu devo abraçar Némesis.
Decidi juntar-me à festa.

A palavra primeva

Com Palavras Breves se explica (e se conta) o surgir do blogue.

O Ricardo que, em poucas linhas públicas, por recentes, provou ser um exímio dom(in)ador das letras, desafiou-me para a abertura deste novo espaço.
A pretensão, com total anuimento, era a de um local dedicado ao conto, à fábula, à novela, à narrativa sucinta, ao mini-romance (se assim lhe pudermos chamar).
Não só me pareceu bem, pela criatividade da iniciativa, como, aliás, me despertou curiosidade pelo que daqui poderia (poderá?) surgir.

Convite lógico, aquele que foi feito ao Filipe, há já algum tempo a desfraldar as velas da caravela (a sua) da ficção.
Como é óbvio, lógico e previsível, dentro das cerradas fronteiras que a abrangente blogosfera impõe, far-se-ão novos convites, mormente a quem, já, no dia-a-dia, no seu próprio espaço, traça este mesmo rumo, agora, aqui, adoptado.

Não se confunda o termo “Breves” com leveza, ligeireza, leviandade. Antes, se compreendam os limites que este espaço impõe em termos, precisamente, de espaço (não será isto, também, um incentivo, um quase-desafio, à criatividade?).

A seu tempo, se verificará se o blogue merece, ou não, ser um ponto de paragem, de reflexão, de crítica, de discussão. A seu tempo, se verificará se valeu a pena, ou não, unirmo-nos neste projecto. A seu tempo, se verificará se temos arcaboiço, ou não, para sustentar este debuxo, conscientes da envergadura e das proporções que poderá vir a alcançar.

A mim, coube-me a parte mais fácil – a de prefaciar a obra ainda por escrever; a de dar o primeiro passo, com singelas linhas, para que se comecem, de facto, a soltar os nós da criatividade. A nós, para já poucos, cabe-nos começar a erigir, com palavras breves, o Palavras Breves.